Teoria vs Prática —A vivência vale mais que qualquer modelo?

Tito Spadini
5 min readDec 28, 2018

Desde minha infância vivi grandes inquietudes por conta de dizeres como “a gente aprende mesmo é na prática”, “o que vale a é a prática”, “é fazendo que se aprende”, “teoria é muito blá blá blá; é tudo conversinha” etc. Nunca fui o que muitos compreendem como sendo um grande gênio, um grande pensador, alguém que transcende inequivocamente as fronteiras do pensamento humano, podendo enxergar muito além do que um mero transeunte outrora o fez, mas é incrível o quão incomodado eu fico com tal linha de pensamento.

O que percebi é que a teoria pode ser tremendamente complexa e, por isso, com o intuito de reduzir a complexidade, seja para fins meramente didáticos ou com o objetivo de se encontrar um modelo computacional mais eficiente, o que seria o modelo cuja descrição atingiria o maior nível de fidelidade acaba sendo deixado de lado, pois o modelo mais fiel pode ser tão complexo, que até mesmo grandes intelectuais de uma certa área poderiam ter sérias dificuldades para trabalhar com tal modelo, o que resultaria em grandes quantidades de recursos (e.g. tempo, energia, paciência, dinheiro etc.) despendidos sem que pudessem ser obtidos frutos suficientemente proveitosos que fossem capazes de justificar tamanha falta de parcimônia. Em termos mais corriqueiros, podemos dizer que as pessoas tendem a buscar uma facilitação, uma simplificação das coisas.

Neste contexto, podemos dizer que informação é toda a parte útil de uma mensagem; o resto é ruído. Mas eu acredito que seria preciso definir de forma muito específica quais seriam os objetivos da mensagem, pois, caso contrário, seria impossível definir minimamente bem qual seria um limiar aceitável para separar informação de ruído. Caso consigamos encontrar o limiar ideal, teremos condições de resumir (comprimir) certas partes de uma mensagem, talvez até mesmo através de um mero descarte de palavras. Ainda assim, isso seria uma utopia, pois acredito que na comunicação humana não existe compressão sem perdas. Como não somos — nem de longe — perfeitos na definição desse limiar, inevitavelmente, acabamos descartando (ou distorcendo) informação ao tentarmos descartar ruído.

Ou seja, a meu ver, ao tentarmos reduzir a complexidade de um problema, necessariamente, por mais que tentemos evitar isso, acabamos causando perturbações nele e, com isso, modificamos o que ele realmente deveria descrever. Assim, um modelo teórico sempre terá alguma “distância” do problema real, por menor que seja. Modelos muito bem formulados, elaborados com elevado grau de rigor, tendem a ser mais acurados e precisos; por outro lado, modelos mais simples e — com o perdão do aparente desdém — desleixados tendem a ser mais vulneráveis e frágeis, ou seja, têm maior probabilidade de apresentarem resultados diferentes dos esperados quando utilizados.

Alguns colegas gostam de mencionar o que chamam de “Lei do Menor Esforço”, alegando que as pessoas sempre — ou quase sempre — procuram seguir pelo caminho que dependerá do menor esforço (ou gasto) de sua parte. Confesso que nem sempre concordo com essa visão, mas compreendo que ela seja, sim, bastante presente no dia a dia das pessoas. Com base nisso, entendo que é normal que, devido a uma mistura de ignorância, preguiça e desinteresse por parte de parcelas imensas da população quanto ao que diz respeito a qualquer assunto que demande maior quantidade de recursos a serem despendidos, as pessoas tendam a evitar (a todo custo) qualquer modelo mais complexo, ainda que essa complexidade seja muito mais presente na aparência interpretada a partir de um primeiro olhar já preguiçoso e ressabiado.

Não é preciso ser gênio para compreender que essa filtragem exagerada em busca da simplicidade muitas vezes acabará optando por modelos com elevadas chances de “errar”. A bem da verdade, nem seria esse o grande problema. O problema, ao menos a meu ver, está em optar por essa extrema simplicidade na hora de adotar um modelo, porém, assim que o problema ocorre, reclamar alegando que o modelo não é bom. Seria como contratar o serviço de uma empreiteira para reformar uma casa gigantesca por apenas R$10.000,00, mas querer exigir uma reforma digna de um investimento de R$250.000,00. O problema não está no gasto de R$10.000,00, mas, sim, no aparente sentimento misto de surpresa e indignação ao ver que os resultados da reforma de R$10.000,00 ficaram bastante diferentes dos esperados para uma reforma de R$250.000,00.

A questão aqui é bastante simples: mantenha a coerência. Se o seu modelo busca elevadas precisão e acurácia, então compreenda que isso demanda que diversos elementos sejam considerados no modelo e, assim, sua complexidade tenda a crescer; por outro lado, caso você exija enorme simplicidade, entenda que a descrição da realidade tenderá a conter mais erros, inclusive podendo ser erros consideravelmente grandes, dependendo de como tiver sido formulado o tal modelo.

Isso tem total relação com o que eu ouvia — e, lamentavelmente, ainda ouço — sobre essa triste fantasia de que a teoria “vale menos” que a prática, ou, o que é muitíssimo pior, de que apenas a prática tem algum valor. Pessoas que tendem a compartilhar desse sentimento, em geral, são pessoas que não aprenderam muito bem o que é um modelo e qual vem a ser a sua utilidade. Não chega a ser possível generalizar, mas costumam ser pessoas com muitas carências em matemática, principalmente quanto àquela típica questão de que a pessoa pode até “acertar as contas” quando são atribuídos valores numéricos quaisquer às variáveis, porém, ao serem formuladas as mesmíssimas questões sem os valores numéricos, tendo de deixar tudo em função de várias variáveis, ficam com a sensação de que estão resolvendo uma prova de um programa de doutorado em matemática pura.

Pode até parecer um tópico “bobo”, mas não é. Esse tipo de pensamento cria uma espécie de “culto à ignorância” entre as pessoas que tendem a adorar pensamentos como o da “escola da vida”, sugerindo (erroneamente) que meramente viver faz com que uma pessoa aprenda muito mais sobre qualquer tópico do que qualquer pessoa que procure, de fato, estudar sobre tal tópico, o que seria uma grande maluquice. Viver algo não necessariamente implica entender tudo sobre esse algo, afinal, por mais que tenha sido vivido esse algo, terá sido apenas um caminho de vida dentre tantos outros possíveis, o que não confere uma onisciência acerca do tópico em questão.

Sinto, inclusive, que essa visão costuma ser compartilhada entre pessoas que não conseguem fundamentar muito bem seus pontos de vista mas que, apesar de não terem um grau de conhecimento teórico muito elevado sobre o assunto, querem se valer de sua “vivência” como sendo um fator argumentativo que coloque em xeque qualquer tentativa de argumentação legítima, “empoderando” os “vivenciadores” com uma nova chance de participarem intensamente da discussão, mas, desta vez, com maior “poder de fala”, como se isso fosse uma espécie de “escudo impenetrável”. Assim, caso qualquer um que tenha uma opinião diferente surja, a pessoa já se prepara levantando o seu “escudo”, que é essa tal “vivência”.

O triste disso tudo é que muitas pessoas “caem” nessa falácia e acabam seguindo por tal caminho equivocado. Enquanto o objetivo for apenas o de conseguir alguns meros elogios advindos de grupos próximos de amigos ou de pessoas que já compartilham de um pensamento similar, tudo parecerá estar lindo e maravilhoso; porém, a partir do momento que os objetivos passarem a ser os de se atingir uma descrição fidedigna da realidade, os resultados podem ser simplesmente desastrosos; e, dependendo do quão exagerado e inconsequente tiver sido o uso dessa “ferramenta”, é possível que seja simplesmente irreversível.

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Tito Spadini

Ph.D. student in information engineering, scientist, researcher, writer, programmer, and gamer.